Heróis: tê-los ou não tê-los, eis a questão

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Como definir um herói? Uma definição sucinta, apesar de incompleta, pode ser a de uma pessoa ou de um grupo de pessoas extremamente valorizadas e reconhecidas por suas habilidades, competências ou feitos extraordinários, nas mais diversas áreas possíveis da vida e do comportamento humano.

A estas competências e feitos, que podem ser de diferentes naturezas (motora, intelectual, artística, religiosa/espiritual, política ou performática no interior das mais variadas profissões, por exemplo), somam-se outros elementos que dão ao herói seu “grau de heroísmo”. Doses razoáveis – para não dizer cavalares – de coragem, audácia, inteligência e criatividade/inventividade são muito importantes. Entretanto, para além desses aspectos, é o feito improvável, inesperado e por isso mesmo surpreendente, que capaz de gerar intensa alegria e admiração inconteste nas pessoas estabelece as bases para a edificação de um herói.

Com esta moldura em mãos, o leitor poderá enquadrar diferentes personalidades heroicas, de acordo com suas aspirações e predileções. Assim, e só para citar alguns exemplos, entram aqui grandes esportistas, intelectuais, cientistas, artistas, músicos/compositores, líderes religiosos, líderes políticos, revolucionários, profissionais que zelam pela manutenção da vida como um todo e da vida humana em particular, etc.

Agora, se aprofundarmos nossa análise a respeito da figura do herói, colocando em segundo plano esta perspectiva que se limita a descrever suas características e passarmos a olhar por um ângulo psicológico, veremos um fenômeno bastante peculiar em jogo. A saber, o fenômeno da idealização.

O fenômeno da idealização consiste em uma ocorrência psicológica tipicamente humana, haja vista a dimensão social de nossa espécie associada ao universo da linguagem. É por esta linguagem que se torna possível a emergência e o acesso ao universo simbólico de representações.

Pois bem, o processo de idealização ocorre quando uma pessoa, um grupo de pessoas ou até mesmo uma massa projeta em um determinado indivíduo ideais ou perfeições que um dia almejaram para si mesmas e não as alcançaram em definitivo. A idealização, nesse sentido, traduz a distância existente entre o que eu realmente sou e o que eu gostaria (de maneira idealizada, fantasiosa e perfectiva) de ser.

Este ser ideal tão inconscientemente aspirado, perfeito, onipotente, livre de críticas, de falhas, autossuficiente e imortal, com o qual um dia, nos primórdios da infância, cada um de nós acreditou coincidir, este ser ideal (dado o processo normal de desenvolvimento psicológico) agora encontra-se remanejado no inconsciente de cada um.

 

Entretanto, não é porque este “ego ideal” (para usar a expressão psicanalítica exata) foi dissolvido e teve seus componentes mantidos no inconsciente que ele se tornou inativo na vida mental. Ao contrário, é justamente por ser inconsciente e deixar marcas indeléveis no psiquismo que esta fantasia narcísica de onipotência e autossuficiência se mantem viva no fundo da alma de cada indivíduo.

De maneira que, quanto maior for a percepção de minha precariedade comparada ao que desejo ser em fantasia, maior será a idealização que estabelecerei para o meu herói.

Por este raciocínio, não é de se espantar que quanto maior o nível de frustração e desapontamento individual ou coletivo, maiores as chances de pessoas serem transformadas em semideuses, em super-heróis.

Assim, para uma sociedade imersa no descrédito político, na corrupção, na falta de justiça ou em extensa desigualdade social, alguém que reúna as qualidades de honestidade, justeza e/ou liderança política em prol dos desfavorecidos e da democracia poderá ser heroificado.

Da mesma maneira, devido à população de um país como o Brasil valorizar o futebol, “astros da bola” surgirão projetados pelos olhos de milhões de pessoas, que um dia sonharam em brilhar sobre os gramados.

Em contrapartida, não se trata de desencorajar ou combater a existência de heróis. Eles estimulam e inspiram a humanidade a seguir em frente, esperançada pela busca de um futuro melhor e por um presente mais satisfatório e menos sofrível.

Por outro lado, não seria indicado querer produzí-los em série ou de uma só vez. Até mesmo porque, além do enigma e da força do acaso de seu surgimento, em larga escala eles podem ofuscar uma percepção mais fiel da realidade, reduzir o juízo crítico sobre ela e favorecer a alienação da responsabilidade e do poder que cabe a cada um de nós transformá-la.

Por fim, talvez tenhamos minimamente tangenciado uma das funções  sociais de um herói e sua simbologia: ser bússola, responsável por apontar o norte de nossa jornada, sem nunca predizer qual o local de chegada, mas sempre mostrando o(s) ponto(s) de partida.

Para isso, é necessário segurar firme as suas (e as nossas) bússolas, podemos voar… Mas sempre com os pés no chão.

Colaboração de: Marcelo Bosch Benetti dos Santos, especialista em psicologia clínica, mestre em psicologia clínica e pós-graduação em neuropsicologia).

Publicado na edição nº 10285, de 14, 15 e 16 de julho de 2018.